A realização do II Congresso da Cidade, em Coimbra, no fim-de-semana passado, veio revalidar e emprestar novo fôlego à experiência de participação política que vem tendo lugar desde há vários anos naquela cidade. Trata-se de uma boa oportunidade para reflectir sobre as virtualidades e limitações dos mecanismos espontâneos de intervenção cívica que, sobretudo a nível local, têm sido utilizados para aprofundar e enriquecer a democracia representativa.
Em 2001, o primeiro Congresso da Cidade veio estabelecer um novo patamar na reflexão colectiva e na intervenção cívica na vida da cidade e do município de Coimbra. A aprovação nesse congresso da Carta Constitucional da cidade introduziu um elemento inovador na concepção e organização das formas de "democracia participativa" a nível local. A criação de um "conselho da cidade", um organismo permanente constituído por membros eleitos no Congresso e por representantes das organizações sociais aderentes, proporcionou não só visibilidade pública à iniciativa mas também os meios para ela se poder concretizar.
O caso de Coimbra sobressai entre as diversas experiências de participação política a nível local que têm aparecido entre nós nos últimos anos, que representam um evidente eco, se bem que em versões muito "light", do movimento em prol da democracia participativa a nível local por esse mundo fora. É fácil ver que, embora sem ter podido corresponder às grandes ambições iniciais (como quase sempre...), a experiência coimbrã representou, ainda assim, uma iniciativa assaz positiva, mostrando que é possível organizar, com carácter continuado, a intervenção de cidadãos e organizações sociais na reflexão e na fiscalização do governo local.
A participação directa das pessoas e das organizações na gestão pública local, tanto na discussão sobre o governo municipal como na apreciação dos principais instrumentos da gestão urbana (PDM, plano de actividades e orçamento, etc.) e das políticas públicas locais em geral, não constitui somente um meio de aperfeiçoamento da democracia municipal, mediante o envolvimento cívico e a fiscalização e responsabilização política dos órgãos oficiais do poder local. É também um meio privilegiado de construção da identidade colectiva e de coesão social e territorial das comunidades locais, através do debate e da deliberação sobre os problemas da cidade, do desenvolvimento local e do governo municipal.
O desenvolvimento de formas específicas de participação cívica no governo local surge como um dos principais meios de resposta às insuficiências tradicionais da democracia representativa e à "crise de representação" por que ela vem passando, traduzida no crescimento da abstenção, da indiferença e da desconfiança política. Oriundo do Brasil, sobretudo através do processo do "orçamento participativo" de Porto Alegre, este movimento de "democratização da democracia" (como já foi certeiramente qualificado) tem-se estendido por outros continentes, incluindo a Europa.
Com efeito, a democracia não se esgota na democracia representativa, que tem a sua essência nos mecanismos eleitorais e na representação política. Para além desse 1.º pilar fundamental, há mais duas dimensões na organização democrática moderna. O 2.º pilar é constituído pelos dispositivos da democracia directa, pelos quais os cidadãos são chamados a pronunciar-se directamente sobre questões políticas ou a intervir na aprovação das leis e das decisões políticas. Os seus instrumentos principais são o referendo, a revogação popular de mandatos electivos (figura não existente entre nós) e a iniciativa legislativa popular. O 3.º pilar é o da democracia participativa, que consiste essencialmente na intervenção de organizações sociais na formulação das políticas públicas, seja mediante a participação directa nos órgãos decisórios (por exemplo, representação dos sindicatos e organizações de empregadores nos órgãos de governo da Segurança Social ou de "concertação social") seja mediante a criação de órgãos específicos de participação consultiva e propositiva, como sucede em vários países, entre os quais Portugal, com os conselhos económicos e sociais junto dos parlamentos.
A Constituição de 1976, na sua versão originária, se era ostensivamente hostil à democracia directa, nomeadamente aos referendos, era porém particularmente amistosa em relação à democracia participativa, sendo mesmo caracterizada por uma verdadeira inflação de formas de participação dos interessados nas instituições públicas, desde a Segurança Social às escolas, desde a legislação do trabalho ao ordenamento territorial. No plano local, a Constituição dava guarida, embora em termos muito limitados, às formas de participação popular geradas no período revolucionário, designadamente as comissões de moradores, a par da criação de conselhos económico-sociais, de representação das organizações de interesses na área económica, social, cultural, etc.
Contudo, à medida que o tempo foi passando, as referidas expressões da participação "externa" no governo local foram definhando, acabando por desaparecer, umas de direito (os conselhos económico-sociais), outras de facto (as comissões de moradores, que continuam inscritas na Constituição, apesar de se terem desvanecido quase por toda a parte). Enquanto isso sucedia, as instituições do governo local iam sendo caracterizadas crescentemente pelos fenómenos da partidarização e do presidencialismo, ambos contribuindo para o estreitamento da vida política local.
O "poder local democrático", que durante muito tempo constituiu um dos motivos de orgulho da novel democracia portuguesa, foi perdendo algum do seu fulgor originário. Não teve nenhuma serventia o reconhecimento do referendo local, logo em 1982, visto que, passado quase um quarto de século, o número de referendos locais realizados é quase nulo. Os órgãos do poder local não morrem de amores pelo referendo e faltam as estruturas locais alternativas que possam dinamizar a reclamação de consultas populares.
De lema democrático, o poder local tornou-se um crescente problema democrático, traduzido no crescimento da abstenção eleitoral, no alheamento cívico em relação ao governo local, no défice de renovação política (o fenómeno dos "dinossáurios" autárquicos), na vulnerabilidade ao populismo e ao clientelismo, no esgotamento do modelo de desenvolvimento local assente nas infra-estruturas e nos equipamentos físicos, no crescimento urbanístico sem rei nem roque. O arrastamento do processo de reforma do sistema de governo local só faz ressaltar o impasse a que se chegou.
Compreende-se por isso o nascimento de um novo movimento favorável à reactivação de mecanismos de democracia participativa, de forma a mobilizar os interesses dos cidadãos pela vida política local, a aumentar o escrutínio público do governo municipal, a promover a participação popular nas políticas públicas, incluindo de sectores populacionais normalmente afastados dos procedimentos da democracia representativa. Como se viu acima, esta "nova geração" de formas de democracia participativa, decididamente apoiadas por organizações internacionais como a OCDE ou o Conselho da Europa, resulta da convergência das experiências pioneiras de participação popular local nascidas em contextos de processos de democratização (como o "orçamento participativo" Brasil) com a "crise da representação" nas democracias representativas tradicionais.
Não existe, é bem sabido, alternativa global à democracia representativa. Mas uma democracia "multimodal" pode ser bem mais fecunda do que uma democracia "monista".
Vital Moreira
(Público, Terça-feira, 23 de Maio de 2006)